terça-feira, 12 de maio de 2020

MODELO DE SIGNIFICAÇÃO (REFERENCIALISTA) MENTALISTA


O modelo de significação referencialista mentalista tem como característica: i) o referencialismo como fator preponderante no processo de significação, onde o significado de uma palavra é sua referência; e ii) ter a imagem mental como fator preponderante no processo de significação, pois o caminho que a palavra trilha para chegar na referência passa pelas imagens mentais dos usuários da linguagem. Esse modelo pode apresentar algumas variações quanto ao modo como a imagem mental é trabalhada, sem, entretanto, perder a característica de atribuí-la um papel indispensável em todo processo.
Deste modo, pode-se dizer que no modelo de significação referencialista mentalista ocorre: i) o homem é afetado por um objeto no mundo; ii) uma imagem mental de tal objeto é gerada (em sua mente); iii) um som é associado a essa imagem mental; e iv) sinais escritos são associados aos sons.
Aristóteles, Thomas Hobbes e Friedrich Nietzsche se mostram como exemplos de filósofos que se encaixam neste modelo. Entretanto, que sejam feitas ressalvas quanto às peculiaridades de cada modelo de significação.

1 O mentalismo de Aristóteles


Na obra Da Interpretatione, Aristóteles esboça um modelo de significação que atende aos requisitos exigidos para se encaixar no modelo de significação mentalista[1]. O estagirita afirma que “a voz é símbolo das afecções na alma e a escrita da fala” (cap1, 16a 1 – 10). Se for possível tornar isto mais claro, entende-se que a voz e a escrita são símbolos que se remetem às afecções da alma, que são aquilo que estou chamando de imagem mental, e à fala respectivamente. Um desdobramento disto, entretanto, o qual o filósofo acrescenta logo em seguida, é que, uma vez que as letras não são as mesmas para todas as pessoas, os sons falados também não serão os mesmos. Contudo, Aristóteles deixa bastante claro, as afecções da alma (imagens mentais), as quais são objetos de símbolo dos sons, são as mesmas para todas as pessoas. Não importa que os nomes sejam dados por convenção[2] (cap 2, 16a 20 – 16b 5), o que possibilita a significação é o fato de a identidade das afecções da alma ser assegurada em todas as circunstâncias e para todas as pessoas. Em suma, todas as pessoas percebem o mundo da mesma maneira. Daí ser possível as pessoas se compreenderem, traduzirem de uma língua para a outra e outros fenômenos linguísticos corriqueiros.
O que importa anotar neste momento é que: i) a afecção da alma (imagem mental) é a mesma para todas as pessoas; ii) os sons são símbolos das afecções da alma; iii) os signos escritos são símbolos dos sons atribuídos às afecções; iv) os signos escritos e sons podem ser diferentes, contanto que a afecção seja a mesma; e v) conclui-se que a afecção (imagem mental) tem um papel indispensável no processo de significação.

1.1 O conceito de pensamento em Aristóteles


Considerando, entretanto, que o tema central deste trabalho é o conceito de pensamento, é plausível fazer algumas considerações sobre este conceito no entendimento de Aristóteles.
No livro III, capítulos 3 e 4, de sua obra De Anima, Aristóteles aborda o pensamento sob a ótica de um modelo de percepção proposto anteriormente (no livro II), onde os objetos do mundo afetam o indivíduo através dos órgãos dos sentidos, sendo que o meio pelo qual ocorre essa afetação é chamado de diáfano. Por exemplo, o órgão da visão é o olho, mas entre a árvore e o olho há um meio que torna possível que a árvore afete o órgão do sentido em questão. Esse meio é o diáfano, seja o ar ou a água ou o que quer que seja.
Mas, no que se refere ao pensamento, Aristóteles se preocupa em refutar uma tese de seus predecessores: o pensamento é uma realidade corporal, uma espécie de sensação (427a 20). O argumento do estagirita é simples: ao defender esta tese, seus predecessores afirmavam como consequência que o semelhante percebe e pensa pelo semelhante; além disso, os pensamentos são corretos ou errôneos, então ou todas as aparências seriam verdadeiras ou o engano se dá no contato com o dessemelhante (427b). O problema é que, para Aristóteles, a sensação dos objetos sensíveis é sempre verdadeira, enquanto que o pensamento pode ser verdadeiro – no caso da inteligência, ciência ou opinião verdadeira – ou falso (427b 10). Além do fato que, em Aristóteles, a sensação é pertencente a todos os animais, mas o pensamento somente pertence a quem possui razão. Sendo desse modo, o pensamento não pode ser identificado como sensação.
Não obstante, o filósofo também distingue pensamento de imaginação. A imaginação não é pensamento, pois – em um dos argumentos – a imaginação depende de nós – podemos evocar uma imagem qualquer em nosso espírito –, enquanto que o pensamento não depende de nós, pois não podemos escapar à verdade e ao erro ao formar uma opinião (427b 20).
Mas, duas observações são importantes: i) se o pensamento não tem uma relação de identidade com a imaginação, ele a compreende (427b 25); e ii) a alma jamais pensa sem imagens (431a 15). A primeira observação não carece de muitos esclarecimentos. Pensar implica o uso da faculdade da imaginação, mas é uma faculdade que apresenta algo mais do que isso. A segunda observação, contudo, pode ser entendida do seguinte modo: i) Aristóteles divide a alma em algumas partes, sendo que só pensa quem possui a alma racional ou intelectiva. Na alma racional (dianoética), as imagens substituem as sensações, ou seja, o intelecto não trabalha com a coisa percebida, mas apenas com o produto da percepção, que são as imagens. Dito de outro modo e exemplificando, uma árvore está para o órgão da visão – podendo ter sua imagem evocada em um momento posterior, inclusive – assim como a mera imagem da árvore está para o intelecto[3].
Importa-nos aqui, portanto, a seguinte conclusão: uma vez que o intelecto trabalha com imagens, o pensamento requer imagens; a alma pensa por intermédio de imagens. Voltaremos a esse ponto.

2 O mentalismo de Thomas Hobbes


A proposta de Hobbes para resolver o problema da significação é similar a de Aristóteles, divergindo apenas em alguns detalhes.
Hobbes defendia – em seu Leviatã – que “o uso geral da linguagem consiste em passar nosso discurso mental para um discurso verbal, ou a cadeia de pensamentos para uma cadeia de palavras” (199, p. 44), o que pressupõe algo que exista de forma independente no (que aqui se chamará de) mundo interior, do qual as outras pessoas não têm acesso senão o próprio indivíduo. Mas, além deste mundo interior, também está pressuposto na abordagem da linguagem de Hobbes um mundo exterior, do qual as outras pessoas têm acesso, e não somente o próprio indivíduo. Também se pode dizer, em relação a isso, que o discurso mental está para o mundo interior assim como o discurso verbal está para o mundo exterior.
Contudo, faz-se necessário explicitar que esse discurso mental se origina através das sensações. Pois, Hobbes diz em seu que “não há nenhuma concepção no espírito do homem, que primeiro não tenha sido originada, total ou parcialmente, nos órgãos dos sentidos” (1999, p. 31). Não obstante, esse processo ocorre semelhante a como defendia Aristóteles. Os objetos do mundo afetam o homem de modo a criar uma imagem mental, que Hobbes preferia chamar de “ilusão originária”, conforme a citação a seguir: “em todos os casos a sensação nada mais é do que a ilusão originária, causada [...] pela pressão, isto é, pelo movimento das coisas exteriores nos nossos olhos, ouvidos e outros órgãos a isso determinados” (1999, p. 32). Aqui está claro aquele encadeamento mentalista: objeto, imagem mental e discurso sobre o mundo mental.
Como já dito anteriormente, o discurso mental está para o mundo interior, que nada mais é do que o conjunto de imagens mentais geradas pelos objetos do mundo que afetam os homens (usuários da linguagem). Isso significa que o conjunto das imagens mentais geradas na mente humana correspondem a um discurso autônomo, um discurso do pensamento, e que o discurso verbal diz respeito ao mundo exterior, o mundo que afeta todos os homens. Ou seja, o discurso verbal se configura como uma tradução do discurso mental (produto de imagens mentais), do que se segue que é na imagem mental que se encontra o coração do processo de significação. Essa característica será responsável por colocar Hobbes ao lado de Aristóteles, uma vez que também propõe um modelo de significação mentalista.

2.1 O pensamento em Hobbes


No pensamento de Hobbes, portanto, encontram-se duas linguagens: a linguagem verbal, que é externa; e a linguagem do pensamento, que é interna. Essa linguagem interna ficou conhecida na história da filosofia como mentalês, que é uma hipótese que defende a existência de uma linguagem interior universal, da qual todas as línguas naturais são traduções.
Pinker faz a seguinte pergunta em The Language Instinct (1995, p. 56): “Is thought dependent on words?” Em caso de uma resposta positiva e o pensamento depender das palavras, então as pessoas pensam literalmente em seus idiomas: português, inglês, espanhol, mandarim e assim por diante. A esse tipo de resposta, entretanto, Pinker faz os seguintes questionamentos:
E se os pensamentos dependem de palavras, como uma nova palavra sempre pode ser criada? Como uma criança poderia aprender uma palavra para iniciar [a linguagem]? Como a tradução de um idioma para outro seria possível? (1995, p. 58)[4] (Grifos nossos).
Convencido de que essas necessidades não seriam supridas na primeira hipótese, Pinker sugere que a resposta deve ser negativa: o pensamento não depende das palavras. Isso implica que deve haver algo como a linguagem do pensamento: uma linguagem interna e universal, a qual possibilita a resolução simples de todos esses problemas. Desse modo, por exemplo, as palavras novas que são criadas são termos diferentes para traduzir “termos” já existentes na linguagem do pensamento: o mentalês.
Como já vimos, Hobbes defende uma linguagem interna, que é parâmetro para a tradução do discurso verbal, de modo que podemos dizer que para Hobbes o pensamento é uma linguagem interna inata a todos os indivíduos.

3 O mentalismo de Friedrich Nietzsche


O filósofo da genealogia da moral também propôs um modelo de significação, ainda que com suas características peculiares, o qual pode ser classificado como mentalista. 
Nietzsche parte do pressuposto de que tudo começa na afetação do homem pelos objetos do mundo. Entretanto, há uma divergência com relação a Aristóteles (e a Hobbes também). Já foi dito anteriormente que, para o estagirita, um mesmo objeto causa a mesma afecção (imagem mental) em todas as pessoas. Pois bem, Nietzsche até concorda que o objeto que afeta os homens seja o mesmo, mas discorda que as afecções (imagens mentais) sejam as mesmas. Segundo Nietzsche (2007, p. 31), uma palavra nada mais é do que “a reprodução de um estímulo nervoso em sons”, sendo que esta imagem mental não passa de uma metáfora do objeto real no mundo. Os sons, não obstante, já se tratam de outra metáfora, desta vez da imagem mental.
De antemão, um estímulo nervoso transposto em imagem! Primeira metáfora. A imagem, por seu turno, remodelada num som! Segunda metáfora. E, a cada vez um completo sobressalto de esferas em direção a uma outra totalmente diferente e nova. Pode-se conceber um homem que seja completamente surdo e que jamais tenha tido uma sensação de som e da música: da mesma forma que este, um tanto espantado com as figuras sonoras de Chladni sobre a areia, encontra suas causas na vibração das cordas e jurará que agora não pode mais ignorar aquilo que os homens chamam som, assim sucede a todos nós com a linguagem. Acreditamos saber algo acerca das próprias coisas, quando falamos de árvores, cores, neve e flores, mas, com isso, nada possuímos senão metáforas das coisas, que não correspondem, em absoluto, às essencialidades originais (NIETZSCHE, 2007 pp. 32 – 34).
Isso tem como consequência a afirmação de que não há uma coisa tal como a verdade, pois esta se trata apenas de um atributo da linguagem, convencionado por uma questão de ordem moral. Assim, a verdade é:
Uma soma de relações humanas que foram realçadas poética e retoricamente, transportadas, adornadas, e que, após uma longa utilização, parecem a um povo consolidadas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões das quais se esqueceu que elas assim o são, metáforas que se tornaram desgastadas e sem força sensível, moedas que perderam seu troquel e agora são levadas em conta apenas como metal, e não mais como moedas (NIETZSCHE, 2007, pp. 36 e 37).
Dessa forma, não há nenhuma justificativa para o processo de significação que não seja meramente uma questão moral e útil para os homens. De acordo com Nietzsche, não há uma mesma percepção de um determinado objeto e não há como, partindo de percepções subjetivas e particulares, inferir a existência de universais, os quais são sinalizados por meio dos conceitos. Os conceitos, para o filósofo alemão, surgem da inobservância do individual e efetivo (2007. p. 36). Ou seja, os homens ignoram o fato de que cada um só tem a sua percepção subjetiva do mundo e se portam como se fosse, de fato, possível estabelecer um conhecimento objetivo e, posteriormente, intersubjetivo do mundo. Então, por exemplo, um homem observa uma árvore e ignora que a imagem mental que produz dela nada mais é do uma metáfora. A imagem mental da árvore não é a árvore. Não satisfeito, produz um som para a imagem mental da árvore e ignora não somente que este som nada mais é do que uma metáfora da imagem mental, como também passa a acreditar que o som e a árvore do mundo real são a mesma coisa. Daí é que surge o conceito, segundo Nietzsche.
Bom, no entanto o que interessa observar é o seguinte: i) o homem, ao entrar em contato via os órgãos dos sentidos com um objeto no mundo, cria uma imagem mental deste (que é uma metáfora); ii) posteriormente, cria um som e o associa a imagem mental (outra metáfora); iii) engana-se acreditando que a imagem mental é o próprio objeto e que o som diz de fato o que é tal objeto, via imagem mental; e iv) constrói todo seu sistema de significação fundado em pressuposições errôneas, do que resultará que não há algo como a verdade, bem como não há conceitos universais.
Na abordagem sobre a linguagem de Nietzsche, portanto, a imagem mental tem um papel indispensável no processo de significação, contanto que se faça a ressalva de que tal imagem: i) não reproduz fielmente o objeto e ii) não é mesma para todos os homens. Entretanto, ao ignorar tais fatos, o homem constrói seu sistema de significação baseado em metáforas, as quais eles tomam por verdade.
Mas, de onde vem à necessidade de criar um sistema de significação fundado na ilusão da verdade? Para Nietzsche, esse impulso à verdade surge porque o homem tem a necessidade de viver em sociedade, o que o leva a consentir fazer parte de um acordo. Veja:
Enquanto o indivíduo, num estado natural das coisas, quer preservar-se contra outros indivíduos, ele geralmente se vale do intelecto apenas para dissimulação: mas, porque o homem quer, ao mesmo tempo, existir socialmente e em rebanho, por necessidade e tédio, ele necessita de um acordo de paz e empenha-se então para que a mais cruel bellum omnium contra omnes ao menos desapareça de seu mundo. Esse acordo de paz traz consigo, porém, algo que parece ser o primeiro passo rumo à obtenção daquele misterioso impulso à verdade. Agora, fixa-se aquilo que, doravante, deve ser “verdade”, quer dizer, descobre-se uma designação uniformemente válida e impositiva das coisas, sendo que a legislação da linguagem fornece também as primeiras leis da verdade: pois aparece, aqui, pela primeira vez, o contraste entre verdade e mentira. (NIETZSCHE, 2007, p. 29) (grifos do autor).
Enfim, o ponto é que essa necessidade gera uma imposição moral, a qual leva os homens a acreditarem que de fato existe algo como a verdade, ignorando (ainda que propositalmente) que esta nada mais é do que um mero atributo da linguagem.

4 Críticas ao modelo mentalista


Considerando que os problemas que um modelo de significação deve enfrentar, para os fins apropriados deste trabalho, correspondem à relação linguagem, imagem mental e mundo, além de explicar o fenômeno do falso, deve-se verificar se o modelo mentalista passa ileso por esses critérios.
A primeira observação que pode ser feita é que o modelo mentalista apresenta uma debilidade no que se refere à explicação da articulação, mediada pela imagem mental, entre o objeto do mundo e o signo linguístico (que aqui pode ser sonoro ou escrito). Essa debilidade se configura devido à ausência de critérios para se referir à imagem mental. Isso ocorre devido ao fato de a imagem mental se localizar em um “espaço” subjetivo, impossível de ser verificado publicamente. Deste modo, encontra-se uma dificuldade de colocar a imagem mental (inverificável) como tendo um papel indispensável no processo de significação. Uma vez que isso ocorre, não obstante, fica implausível se posicionar a respeito do fenômeno do falso na linguagem.
Aristóteles se posiciona sobre o fenômeno do falso considerando que tanto a afirmação quanto a negação são discursos declarativos. Ou seja, discursos que declaram algo acerca de algo (afirmação) ou declaram algo separado de algo (negação). Assim, conforme ele escreve em De Interpretatione:
Uma afirmação é uma declaração de algo acerca de algo; uma negação é uma declaração de algo separado de algo. E como é possível declarar tanto que algo pertence, como não pertencendo, e algo que não pertence, como pertencendo, e o que pertence como pertencendo, e o que não pertence como não pertencendo, e também com relação ao tempo, cabe negar tudo que se afirma e afirmar tudo que se nega; assim é evidente que toda afirmação se opõe uma negação e a toda negação, uma afirmação (Cap. 6, 17a 25 – 38).
Dessa forma, Aristóteles consegue resolver o segundo problema com maestria e muita clareza. Pois, de fato, uma vez que a linguagem se refere ao mundo e que, quando em relação de referência com um objeto, declara a pertença ou não pertença de algo a este objeto, criam-se as condições de possibilidades tanto para o discurso verdadeiro quanto para o falso. Exemplificando, se digo de uma porta que ela é azul, através do discurso declarativo: “A porta é azul”; estou declarando que a qualidade “ser azul” pertence à porta. Ora, se de fato a qualidade de ser azul pertencer à porta, o discurso será verdadeiro, caso contrário, será falso. E também se pode utilizar o mesmo raciocínio negando que a qualidade de ser azul pertence à porta.
Contudo, o problema não reside aqui. O problema reside um passo atrás. Pois, como a imagem mental está situada em um local que impossibilita sua verificação, todo discurso significativo, inclusive a afirmação e negação, padece de uma ilegitimidade. E isso ocorre porque toda a teoria de Aristóteles se sustenta na suposição de que as imagens mentais (afecções da alma) são as mesmas para todas as pessoas. O problema é que, quando se pergunta pelos critérios, eles simplesmente não existem. Não há nada que autorize Aristóteles a afirmar que as imagens mentais são as mesmas para todas as pessoas. Tal declaração é inverificável.
Não obstante, uma possível defesa de que há evidências ou até mesmo a necessidade de que as imagens mentais sejam as mesmas, visto que as pessoas se comunicam, se entendem, não passa pelo crivo filosófico rigoroso porque se configura como uma petição de princípio. Ou seja, supor que as imagens mentais são as mesmas em todas as pessoas porque há uma comunicação “bem sucedida” é o supor o que está se querendo provar. Alguém pergunta: “como se pode garantir que as imagens mentais são as mesmas em todas as pessoas?” e outra pessoa responde: “porque isso é preciso para que as pessoas se comuniquem e uma prova disso é que as pessoas se comunicam.” Bem, aqui pode se situar uma linha muito tênue entre condições de possibilidades e petição de princípio. Parece claro, entretanto, que não se trata da primeira alternativa. E uma boa razão para defender que não se trata de condições de possibilidades é que pode muito bem acontecer o que Nietzsche defende: que a linguagem nada mais é do que metáfora e que ninguém conhece nada do mundo interior das outras pessoas ou até mesmo do mundo objetivo. Não há o conhecimento universal. Tudo que os homens têm são metáforas.
Por hora, no que se refere a Aristóteles, basta apontar que: i) A suposição de que as imagens mentais são as mesmas para todas as pessoas, tese fundamental de seua abordagem sobre a linguagem, é inverificável; e ii) disso se segue todos os outros problemas resolvidos por esse modelo, incluindo o fenômeno do falso, são soluções ilegítimas.
Thomas Hobbes, por seu turno, comete erros similares aos de Aristóteles, sobretudo no que se refere à inverificabilidade do que ocorre no mundo interior das pessoas. Ao defender que todo um mundo interior se origina a partir das sensações e que há um discurso mental correspondente a este mundo, Hobbes está defendendo a existência de uma linguagem privada (que pode ser chamada de mentalês). Esse discurso privado (mentalês) se configura como parâmetro de correção para todo o discurso público, correspondente ao mundo exterior, que é justamente o discurso utilizado no ato da comunicação entre as pessoas. Ainda a respeito disto, Hobbes afirma que: “o uso geral da linguagem consiste em passar nosso discurso mental para um discurso verbal, ou a cadeia de pensamentos para uma cadeia de palavras” (1999, IV, p.44). Além disso, defende que através da introspecção é possível conhecer o que se passa na mente das outras pessoas (1999, introdução).
Uma debilidade neste discurso hobbesiano pode ser exposta ao se indagar pelos critérios de correção do discurso mental. É certo que o discurso verbal (público) tem como parâmetro o discurso mental (introspectivo e privado), mas não seria necessário outro discurso que sirva de parâmetro para o discurso mental. Essa colocação parece justa, pois a introspecção, critério sugerido por Hobbes, desconsidera uma assimetria entre primeira pessoa e terceira pessoa. É bem intuitivo perceber que uma pessoa não pode afirmar saber diretamente das experiências de outras pessoas como sabe das suas próprias experiências. E isso se dá porque esse tipo de enunciado é inverificável. Faltam critérios claros de correção, e em filosofia isso não é bem vindo. Desta forma, a única forma de justificar o discurso mental é supor a existência de outro discurso, localizado em outro ambiente metafísico que lhe sirva de parâmetro. Entretanto, tal discurso também padeceria da falta de critérios, pelo que se recorreria a outro discurso e depois a outro até se cair explicitamente em um regresso ao infinito. Em filosofia, isso também não é bem vindo.
Então, no que se refere a Hobbes, pode-se dizer que: i) o discurso mental é inverificável, a exemplo da imagem mental de Aristóteles; e ii) isso invalida todas as tentativas posteriores de resolução de problemas filosóficos linguísticos.
Friedrich Nietzsche, entretanto, apresenta uma vantagem em relação aos filósofos anteriores, que é justamente não ter a “ingenuidade” de supor que as imagens mentais (Aristóteles) ou o discurso mental (Hobbes) são os mesmos para todas as pessoas. Entretanto, Nietzsche também comete o erro de fundar sua teoria em um enunciado inverificável. Desta vez, o enunciado é de que as imagens mentais não são as mesmas. Nietzsche afirma explicitamente que a imagem mental de um objeto do mundo é meramente uma metáfora. Afirma ainda que os sons atribuídos às imagens mentais nada mais são do que outra metáfora. Ao fazer declarações deste tipo, Nietzsche se compromete com enunciados inverificáveis.
Ora, se é bem verdade que não se pode afirmar que as imagens mentais de todas as pessoas sejam iguais, também se configura um equívoco do mesmo tipo afirmar que estas mesmas imagens mentais não são iguais. A alternativa mais sóbria, ao que parece, seria suspender qualquer juízo acerca disto.
Ao assumir, entretanto, que as imagens mentais são diferentes, Nietzsche tem que admitir (não que seja penoso para ele fazer isto) que não há o falso ou o verdadeiro. A verdade e a falsidade, aos fins das contas, não passam de atributos da linguagem, não tendo nenhuma relação com o mundo, e que são colocados por questões meramente morais.
Bem, se por um lado Nietzsche não cede à “ingenuidade” de afirmar a identidade das imagens mentais, por outro não consegue se desvencilhar do papel de preponderância atribuído à imagem mental no processo de significação. Pois, ainda que funcione enquanto metáfora, ela continua no coração do processo de significação. Nessas condições, pode-se dizer, no que se refere a Nietzsche, que: i) as imagens mentais são apenas metáforas dos objetos do mundo (enunciado inverificável); e ii) disso se segue que todo o seu sistema de significação, o qual exclui o verdadeiro e falso como algo pertencente à relação da linguagem com o mundo, também padece de uma alta dose de ilegitimidade.
Uma conclusão prévia do que se discutiu neste capítulo é que esse modelo de significação mentalista necessita ser superado.


[1] O modelo mentalista é necessariamente referencialista, mas o modelo referencialista não necessita ser referencialista. Por exemplo, o referencialismo de Aristóteles é mentalista (daí que o classifico como mentalista), no texto, mas o referencialismo de Frege não é mentalista.
[2] No diálogo Crátilo, Platão apresenta duas teses opostas para a solução do problema da significação: o naturalismo, que defendia que as palavras tem uma relação natural com as coisas das quais são símbolos; e o convencionalismo, que afirma que o significado das palavras se dá por convenção. Aristóteles está claramente mais próximo do convencionalismo.
[3] Para uma breve leitura sobre o intelecto ativo e passivo em Aristóteles, bem como sua relação com o pensamento, ver Aristotle on Thinking (Noêsis), de Marc Cohen (2008).
[4] Do original em inglês: “And if thoughts depended on words, how could a new word ever be coined? How could a child learn a word to begin with? How could translation from one language to another be possible?”

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

Uma breve crítica Wittgensteiniana à concepção mentalista de significado.



José Quitério S. Correia 
(kyttoo@live.com)
(Mestrando em Filosofia pela UFAL)

RESUMO: O presente e breve trabalho tem por intenção apontar uma crítica wittgesteiniana a um modelo de significação de linguagem referencialista mentalista. Para isso, introduz a problemática da significação própria da filosofia da linguagem, e apresenta como os filósofos Aristóteles e Thomas Hobbes tentaram resolver este problema, explicar como se dá o processo de significação. Para ambos, salvo algumas divergências não substanciais para os propósitos deste trabalho, a imagem mental tem um papel indispensável neste processo. Contudo, as falhas deste modelo de significação são mostradas posteriormente. Desta forma, após apresentar a proposta de Wittgenstein para explicar o processo de significação, que de forma simplista repousa nas regras gramaticais, o trabalho não somente negará esse papel indispensável que a tradição confere a imagem mental, bem como afirma que esta não tem nenhuma importância para a produção de significado.
PALAVRAS-CHAVE: Filosofia da Linguagem – Significação - Wittgenstein


Introdução

            Aristóteles afirma no primeiro livro de sua metafísica que a filosofia nasce da admiração dos homens diante das coisas desconhecidas. Desse modo, o homem filosofa unicamente em busca do saber, para que possa não mais se encontrar no estado de admiração. Pensando nesta linha, pode-se observar o processo de significação das palavras. Não é de se admirar como as pessoas pronunciam sons, desenham símbolos, fazem gestos com as mãos ou outras partes do corpo e conseguem produzir significação? Muitos filósofos pensaram acerca desta problemática e apresentaram soluções amplamente variadas ao longo da filosofia pré-contemporânea. Contudo, há uma característica peculiar nestas soluções que é o fato de se tratarem de um modelo de significação onde os termos da linguagem se referem a algo no mundo, tendo como intermediário algo que ocorre na mente. Seja lá o que for que aconteça na mente, será doravante denominado de “imagem mental”.
            Nas linhas que seguem, há a finalidade de apresentar a forma como filósofos como Aristóteles e Hobbes colocaram suas propostas, apresentando as tênues diferenças. Posteriormente se apresentará a crítica insuficiente de Frege a esse modelo de significação e uma crítica que está embasada na filosofia de Ludwig Wittgenstein.


Aristóteles

            Para Aristóteles, a forma como se dá o processo de significação da linguagem é da seguinte forma: o homem sofre afecções que são simbolizadas por sons, os quais são simbolizados pela escrita. Isso significa que, ao estar em contato com o mundo, o homem é afetado por este e esta afecção provoca o surgimento de uma imagem mental, por assim dizer. Na sequência, o homem pronúncia um som que designa essa imagem mental. Essa imagem mental, entretanto, não é outra coisa senão uma imagem de algo que existe no mundo. Poderíamos dizer que é a imagem de um objeto do mundo. Isso fica bem explícito logo no primeiro livro do seu texto denominado Da Interpretação quando Aristóteles afirma que “há os sons pronunciados que são símbolos das afecções na alma, e as coisas que se escrevem que são símbolos dos sons pronunciados”.
Algo que é de fundamental importância, não obstante, para que esse modelo de significação funcione é a garantia de que todos os homens são afetados da mesma forma. A esse respeito, Aristóteles afirma ainda em seu primeiro livro de Da Interpretação que a escrita e os sons não são os mesmos para todos, mas que as afecções são as mesmas, bem como os objetos dos quais as afecções são imagens. Isso significa que o núcleo do processo de significação está justamente no conteúdo mental, pois lá é onde ocorre a interação entre o mundo, o homem e a linguagem.


Hobbes


Mas além de Aristóteles, muitos outros filósofos tentaram resolver esta problemática. Um deles foi Thomas Hobbes. Sua proposta para resolver o problema da significação é similar a de Aristóteles, divergindo apenas em alguns detalhes.
Hobbes defendia no seu Leviatã que “o uso geral da linguagem consiste em passar nosso discurso mental para um discurso verbal, ou a cadeia de pensamentos para uma cadeia de palavras” (p. 44), o que pressupõe algo que exista de forma independente no que aqui se chamará de mundo interior, do qual as outras pessoas não têm acesso senão o próprio indivíduo. Mas, além deste, também se nomeará aqui um mundo exterior, do qual as outras pessoas têm acesso, e não somente o próprio indivíduo. Dir-se-á também que o discurso mental está para o mundo interior assim como o discurso verbal está para o mundo exterior.
Mas antes de prosseguir é necessário explicitar que esse discurso mental se origina através das sensações. Pois Hobbes diz em seu Leviatã que “não há nenhuma concepção no espírito do homem, que primeiro não tenha sido originada, total ou parcialmente, nos órgãos dos sentidos” (p. 31). Esse processo ocorre semelhante a como defendia Aristóteles. Os objetos do mundo afetam o homem de modo a criar uma imagem mental, que Hobbes preferia chamar de “ilusão originária”, conforme a citação a seguir: “em todos os casos a sensação nada mais é do que a ilusão originária, causada [...] pela pressão, isto é, pelo movimento das coisas exteriores nos nossos olhos, ouvidos e outros órgãos a isso determinados” (p. 32).


Crítica

Em suma: tanto para Aristóteles quanto para Hobbes, a imagem mental tem um papel indispensável no processo de significação, uma vez que age enquanto mediadora entre os objetos do mundo e a linguagem. Entretanto, em Aristóteles, o que sustenta a afirmação de que as afecções são todas idênticas em todos os homens não passa de uma ancoragem metafísica. Mas o problema mesmo é que isso é uma afirmação inverificável. Não se pode saber se a imagem mental é mesma para todos os homens, assim como não se pode afirmar que não é a mesma. O enunciado é inverificável, além de não apresentar critérios de correção. Um aristotélico, entretanto, ainda poderia alegar que uma prova de que realmente a imagem mental é igual em todos os casos é que as pessoas conseguem se entender, produzir significado. Mas isso seria uma petição de princípio, pois se supõe o que se quer provar. Supõe-se que a imagem mental é a causa da significação porque há a significação e sem a imagem mental não haveria significação.
Quando se trata de Hobbes, contudo, o que assegura a compreensão é o que comumente em filosofia da linguagem se denomina “mentalês”, que nada mais é do que o discurso mental, que existe independente do discurso verbal e do qual este é apenas mera tradução. O problema com essa proposta de significação é o mesmo: não há como verificar se este “mentalês” é o mesmo em todas as pessoas. Trata-se de algo também inverificável e isso gera problemas quando se trata de filosofia.
Em suma, parece que este modelo de significação referencialista mentalista é incapaz de satisfazer a admiração que o homem sente em responder a questão: “como é possível o significado?” Pelo que até mesmo Frege já apontava em seu artigo intitulado Sobre o Sentido e a Referência (p. 135) que a imagem mental, ou a idéia, é subjetiva e, por isso, a descartava quando o objetivo era resolver a presente querela do significado. Frege apostava no que ele mesmo denominou de “sentido”, o qual era intersubjetivo e tinha condições de apontar para o objeto, a “referência”. Entretanto, o matemático-lógico ainda continuava defendo um modelo de linguagem referencialista. Por isso, a crítica a seguir não será uma crítica fregeana, mas wittgensteiniana. Visto que o maduro Wittgenstein consegue romper com esse modelo de significação referencialista completamente, não somente o modelo referencialista mentalista.
 Wittgenstein, em sua fase madura, entende que os critérios para explicar o que é a linguagem e como ela funciona são públicos. Portanto, não recorre a qualquer espécie de imagem mental para explicar a produção de significado. Isso não significa, entretanto que Wittgenstein negasse que tais imagens existissem, mas tão somente afirmava que não são elas as responsáveis pela significação da linguagem. A linguagem seria uma habilidade desenvolvida através do treino – que Wittgenstein explica através do conceito de seguir uma regra – e que é correspondente a uma multiplicidade de jogos de linguagem inseridos em contextos culturais, as formas de vida. Nessas condições, conforme anota na primeira parte das Investigações Filosóficas, as palavras adquirem significado quando colocadas em uso (I §43). Isso significa dizer que são as regras gramaticais que fazem com que o discurso adquira significação. A linguagem funciona como um conjunto de diversos jogos, onde a habilidade adquirida de jogar em cada um destes jogos é que permite o uso eficiente da linguagem. Um homem aprende a falar um idioma de forma semelhante a como aprende a jogar xadrez, por exemplo, aprendendo as regras do respectivo jogo.
Mas, para que não se diga que Wittgenstein desconsiderou as imagens mentais, deve-se pensar no seguinte: i) a imagem mental de Aristóteles é inverificável e defendê-la implica em cair em petição de princípio, conforme já demonstrado; e ii) se o “mentalês”, discurso mental, de Hobbes é uma espécie de  linguagem privada e padrão para a linguagem pública, o que é que ele tem como padrão? Em outras palavras, se a linguagem pública é tradução do “mentalês”, este também não seria tradução de outro idioma, que por sua vez seria tradução de outro a assim infinitamente? Em filosofia não se admite um regresso ao infinito. Então não se trata de simplesmente ignorar a imagem mental, trata-se de recusá-la argumentativamente.
Outra forma de atacar as sensações privadas e imagens mentais privadas como condicionantes para o significado pode ser encontrado também na primeira parte das Investigações Filosóficas quando Wittgenstein afirma que as palavras que designam sensações estão ligadas às manifestações naturais ( I, §256), do que segue que os critérios não são privados. Além disso, tem o famoso exemplo do “besouro”, que consiste no seguinte: suponha que cada pessoa tivesse uma caixa com algo dentro e que as outras pessoas não pudessem ver o que tem na caixa das outras; ainda que essa coisa pudesse estar em constante mudança, isso não iria interferir no processo de significação se as pessoas tivessem um uso para a palavra “besouro”, na verdade ainda que não houvesse nada na caixa, haveria significação; do que se segue que a coisa, o objeto, é irrelevante no processo de significação (I § 293). O “besouro” seria a imagem mental numa crítica a Aristóteles e a Hobbes e a caixa seria o aparato mental das pessoas. O objetivo é mostrar que não importa o que seja a imagem mental, o uso das palavras seguindo jogos regrados gramaticalmente permite a produção de significado.

Considerações finais
            Conclui-se disso que o modelo de significação referencialista mentalista, seja o de Aristóteles ou de Hobbes é insuficiente porque: no primeiro caso, a imagem mental não pode ser verificada e insistir nisto acarretaria em cair em petição de princípio; e no segundo caso, porque a defesa do “mentalês” conduz a uma queda ao regresso ao infinito, além da falta de critérios de correção. Nâo obstante, a crítica de Frege é insuficiente, pois ele ainda continua refém de um modelo de significação referencialista, ainda que sem imagens mentais com papéis indispensáveis. Mas é com Wittgenstein que a querela encontra solução, dando cabo ao processo de admiração e mostrando a deficiência do modelo de significação referencialista, além de argumentar com sucesso contra a ideia de que as imagens mentais são necessárias e indispensáveis no processo de significação.

Referências
ARISTÓTELES. Da Interpretação. Tradução de José Veríssimo Teixeira da Mata. São Paulo: EDITORA UNESP.
FRANÇOIS, S. Wittgenstein. Trad. de José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Estação Liberdade, 2004. (Figuras do Saber).
FREGE, G. Sobre o Sentido e a Referência. In: Frege, G. (1978). Lógica e Filosofia da Linguagem. Seleção, introdução, tradução e notas de P. Alcoforado. – 2. Ed. Amp. E ver. –  São Paulo: EDUSP, 2009. (pp. 129 – 158).
HOBBES, T. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: EDITORA NOVA CULTURAL LTDA, 1999. (Coleção Pensadores)
MILLER, A. Filosofia da Linguagem. Tradução de Evandro Luis Gomes, Christian Marcel Amorim e Perret Gentil Dit Maillard. – 2. ed. – São Paulo: PAULUS, 2010. – (Coleção Filosofia)
WITTGENSTEIN, L. Investigações Filosóficas. Tradução de José Carlos Bruni. São Paulo: EDITORA NOVA CULTURAL LTDA, 1999. (Coleção os pensadores)

sexta-feira, 20 de outubro de 2017

FILOSOFIA POLÍTICA 2: O SURGIMENTO DO ESTADO


1 Estado

Segundo Aristóteles, o homem é um animal político, do que se segue que a convivência em sociedade é resultado da natureza do homem. Entretanto, filósofos dos séculos XVII e XVIII se preocuparam em apresentar outro tipo de explicação racional para o surgimento da vida em sociedade e, consequentemente, para a criação do Estado. Tais filósofos são conhecidos como contratualistas, pois defendem que os homens por natureza são livres e iguais, mas em algum momento surgiu a necessidade de abrir mão desses direitos e estabelecer um pacto, um contrato social. Vejamos isto a seguir.

1.1 Teorias Contratualistas

Essas teorias recorrem a uma situação hipotética e retórica conhecida como Estado de Natureza. A forma como os homens se encontravam organizados e se relacionavam no Estado de Natureza é que vai justificar o modo apropriado de organização e natureza do Estado. Vejamos.
Thomas Hobbes, autor da célebre obra O Leviatã, não concordava com Aristóteles quando este afirmava que o homem possui em sua natureza o instinto de sociabilidade. O que ocorre é que os homens são competitivos entre si, onde sempre encaram o outro como um concorrente que precisa ser dominado para o alcance de seus interesses e a satisfação dos seus desejos. Daí surge como consequência que do estado de natureza se seguiu um estado de guerra de todos contra todos, onde ocorriam matanças e toda sorte de abusos. Isso levou Hobbes a afirmar que “o homem é o lobo do homem” (homo homini lúpus).
Para resolver o impasse acima, portanto, foi necessário que os homens delegassem sua liberdade e igualdade (direitos naturais) para o estado, que regula as relações entre os indivíduos da sociedade formada. Isso seria o contrato social nos moldes de Hobbes.
Como consequência da delegação da liberdade e igualdade, os homens não poderiam mais guiar a si mesmos, deixando esta tarefa para o estado, que governaria a todos, impondo ordem, segurança e direção à situação catastrófica em que se encontravam os homens. Nas palavras de Hobbes, os homens deveriam
[...] conferir toda sua força e poder a um homem, ou a uma assembleia de homens, que possa reduzir suas diversas vontades, por pluralidade de votos, a uma só vontade [...] é como cada homem dissesse a cada homem [...] transfiro meu direito de governar a mim mesmo a este homem, ou a esta assembleia de homens, com a condição de transferires a ele teu direito, autorizando de maneira semelhante todas as suas ações.
Desse modo, caberia ao Estado, que é soberano, assegurar a paz e a defesa comum da sociedade. Isso impediria que os homens continuassem caçando a si próprios, eliminando a barbárie.
Para John Locke, filósofo inglês, os homens, no estado de natureza, não viviam em uma guerra de todos contra todos, como acreditava Hobbes, mas apresentavam como problema o fato de cada um ser juiz de si mesmo. Ora, não havia uma normatização geral para regular a relação dos homens entrei si, do que segue a aparição de vários problemas. Para resolver esse impasse, surge o estado, que teria como função primordial garantir a segurança dos indivíduos e de seus direitos naturais, como a liberdade e a propriedade.
Desse modo, através do contrato social, nos moldes de Locke, delegariam ao estado o direito de normatizar e julgar as relações entre os homens. Os direitos a liberdade e a igualdade, entretanto, não seriam transferidos de forma alguma. Daí surge a concepção de Estado Liberal, que apenas julgaria os conflitos sociais, sem interferir nos direitos individuais, como a expressão dos pensamentos, a propriedade e a atividade econômica.
A diferença fundamental entre o estado soberano de Hobbes e estado liberal de Locke é que, no primeiro, não há direitos individuais e que, no segundo, tais direitos são assegurados pelo Estado.
Outro filósofo contratualista, que apresentou seu próprio ponto de vista, é o francês Jean-Jacques Rosseau. Esse pensador afirma que o homem por natureza é livre e é a vida em sociedade que o acorrenta, minando sua liberdade. Contudo, Rosseau afirma que há um único fundamento legítimo para o poder político, que seria o pacto social.
Para Rosseau, o pacto social consiste em todos os homens transferirem sua vontade particular à vontade geral. Ou seja, cada cidadão se submete ao poder político (ao Estado) desde que este represente a vontade geral do povo. Assim, o dever ou compromisso de cada cidadão é apenas com seu povo, que é a fonte legítima da soberania do estado. Assim, nas palavras de Rosseau, “cada um de nós põe sua pessoa e poder sob uma suprema direção da vontade gera, e recebe ainda cada membro como parte indivisível do todo”.
O que caracteriza fundamentalmente o estado nos moldes de Rosseau é que cada cidadão deve obedecer às leis que regem a sociedade, contudo tais leis devem representar a vontade geral do povo, o implica que obedecê-las não contraria a sua própria vontade particular. O interesse último do estado legítimo é o bem comum. Para Rosseau, um estado que não tenha essa configuração não é legítimo.
Vale salientar que uma diferença básica entre Hobbes e Rosseau é que, para o primeiro, o homem é portador de um instinto natural perverso, necessitando da sociedade para coibi-los, e para o segundo o homem tem uma natureza boa, que foi corrompida pela vida em sociedade.

1.2 A divisão dos poderes políticos

Como o Estado tem a função de regular o convívio entre os indivíduos, é natural que apareçam três tipos de poderes. O poder de legislar (legislativo), o poder de julgar de acordo com as leis (judiciário) e o poder de executar as leis (executivo). Esses poderes, entretanto, nem sempre foram divididos, o que implicava que um mesmo homem ou instituição legislava, julgava e executava. Isso abria precedentes para que houvesse constantemente abusos de poder.
Para combater o exposto acima, o filósofo francês Charles de Secondat, mais conhecido como barão de Mostesquieu, propôs uma teoria da divisão dos três tipos de poderes, pois:
Quando os poderes legislativo e executivo ficam reunidos numa mesma pessoa ou instituição do Estado, a liberdade desaparece [...] Não haverá também liberdade se o poder judiciário se unisse ao executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor. E tudo estaria perdido se uma mesma pessoa ou instituição do Estado exercesse os três poderes: o de fazer leis, o de ordenar a sua execução e o de julgar os conflitos entre os cidadãos.
Desse modo, Mostesquieu defendia que os poderes políticos devem ser separados, independentes e equilibrados entre si. Os estados modernos (que não são ditaduras) se organizam dessa forma.

1.3 O Estado segundo Hegel

Pensando diferente de Locke e Rosseau, Georg Hegel não acredita na ideia de estado liberal e que se pode falar em indivíduos isolados em estado de natureza, que posteriormente se organizariam em sociedade. Para Hegel, o indivíduo humano só pode ser visto enquanto tal à medida que esteja inserido em uma sociedade: o indivíduo é um ser social. Além disso, o filósofo alemão defende que o estado não é soma de indivíduos, não fundado na vontade geral e nem fruto de contrato social. Para Hegel, o Estado precede o indivíduo, sendo, portanto o fundador da sociedade civil.
Mas de onde vem o Estado? Segundo Hegel, e de acordo com sua filosofia, que enfatiza o desenvolvimento do espírito ao longo da história e diz que a realidade é a manifestação da razão ou espírito, o estado seria a manifestação do espírito objetivo em seu desenvolvimento, que concilia a universalidade humana com os interesses particulares. Conforme escreve Hegel
O Estado é a realidade efetiva da ideia ética [...]. O indivíduo tem, por sua vez, sua liberdade substancial no sentimento de que ele (o Estado) é sua própria essência, o fim e o produto de sua atividade [...] por ser o Estado o espírito objetivo, o indivíduo só tem objetividade, verdade e ética se toma parte dele.
Desse modo, o Estado possui uma universalidade que está acima dos interesses pessoais.

1.4 O estado como instrumento de domínio de classe

Para Karl Marx e Friedrich Engels, filósofos alemães, entretanto, a sociedade humana vivia de forma primitiva antes do surgimento do estado. Nessas comunidades não havia classes e as funções administrativas eram exercidas pelo conjunto de seus membros. Mas em um determinado momento, um grupo se impôs, pelo uso da força, e passou a privatizar certas funções antes desenvolvidas pela comunidade. Esse grupo normatizou a organizou a vida coletiva. Disso surgiu o que se chama de estado.
Esse fenômeno, a aparição do estado, entretanto, surge quando a produção econômica permite uma divisão das classes em mais abastadas e menos abastadas. Surge então uma relação entre exploradores e explorados, onde o papel do estado seria mediar os conflitos daí surgidos, evitando uma luta entre essas classes antagônicas, por um lado, mas estando a serviço da classe exploradora, por outro.
Para Marx e Engels, portanto, o estado surge para ser um instrumento de dominação da classe dominante (exploradora) sobre a classe dominada (explorada).  Desse modo, “a história da humanidade é a história da luta de classes”.
A exploração consiste em que não há uma universalização do trabalho, que é o fundamento da produção material. A classe dominada (também chamado de classe proletária) é a única que produz, mas sua produção acaba indo para abastar a classe dominante.
Na sociedade capitalista, por exemplo, o papel do estado é assegurar a proteção da propriedade privada dos que a possuem em detrimento dos interesses dos que nada têm. Para proteger a propriedade dos capitalistas, o estado tem uma série de instrumentos que visam preservar as relações sociais, as normas jurídicas e a manutenção das desigualdades sociais. Assim, para os filósofos alemães, o estado surge da desigualdade e para perpetuar a desigualdade.